Segunda Parte: Sociedades distópicas na Literatura

Por Fabiane Corrêa Monteiro



Em uma sociedade distópica, acidentes nucleares somados à poluição e à contaminação das águas fazem com que boa parte das mulheres se tornem inférteis. As férteis, se declaradas como adúlteras pelo regime, são recrutadas para que gerem filhos a casais mais abastados, as aias, que vivem como prisioneiras, submetendo-se a humilhações. Este é o enredo da obra O conto da aia, da escritora Margaret Atwood. 


Os absurdos a que pouco a pouco vamos sendo apresentados por uma destas aias, a narradora, tornam-nos testemunhas de todo tipo de violação aos direitos humanos, especialmente das mulheres: Offred, a narradora-protagonista, começa tendo seu dinheiro confiscado, seu emprego roubado; separada de sua filha, torna-se aia e tem  seu nome modificado — os nomes que passavam a ter tinham relação com a família à qual passariam a servir, numa relação de posse, acrescentando-se a preposição of (de) ao primeiro nome do homem a quem serviriam justamente para que essa ideia de posse fosse claramente transmitida, como se a aia fosse um objeto pertencente àquela família.  


Diante de tudo isso, as roupas que passam a ter que vestir até parecem, dos males, o menor, mas vale a reflexão, já que reforçam a ideia já existente entre algumas pessoas de que a mulher representa uma tentação ao pecado, devendo, portanto, cobrir ao máximo seu corpo, algo inadmissível. Além disso, há cenas que nos causam repugnância, como a cena em que Offred, em meio ao casal, precisa “ceder” ao homem, em uma espécie de ritual para a procriação. Se um livro é capaz de provocar-nos deste modo, acredito ter cumprido o seu papel.



Senti-me da mesma forma ao ler recentemente Ensaio sobre a cegueira, de Saramago: nesta obra do grande escritor português, após uma epidemia de cegueira inexplicável, pessoas infectadas são confinadas em um local específico com o objetivo de não transmitirem sua doença aos demais, sob a vigilância constante das autoridades para que de lá não saíssem. As provisões fornecidas pelo governo periodicamente, no entanto, vão se tornando escassas, até não mais ocorrerem. É aqui que a obra abandona a ficção para abraçar a realidade, mostrando-nos o que realmente somos e do que todos somos capazes pelo poder: um grupo, tomando para si a pouca comida que havia, passa a cobrar pelo seu fornecimento, exigindo em troca de objetos que as pessoas ainda tivessem em seu poder a “favores sexuais” — se assim podemos chamar os abusos a que as mulheres tiveram que se submeter para que pudessem comer, em uma sequência de cenas violentas e repugnantes. 


O filme do livro, de 2008, já havia me inquietado: ver, assim, o ser humano completamente despido de sua humanidade, em seu estado primitivo, escravo de seus instintos, sem escrúpulos que o impeçam de cometer absurdos para a realização de suas vontades, e sem qualquer empatia em relação ao próximo. “Nunca se pode saber de antemão do que são capazes as pessoas, é preciso esperar, dar tempo ao tempo, o tempo é que manda, o tempo é o parceiro que está a jogar do outro lado da mesa, e tem na mão todas as cartas do baralho.” (SARAMAGO, 2017, p. 302-303) É também possível uma interpretação filosófica desta cegueira, visível em trechos como “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” (SARAMAGO, 2017, p. 310)



Toda distopia ajuda de certa forma a nos percebermos como a sociedade doentia que nos tornamos, um espelho a refletir nossas angústias e imperfeições. A distopia concebida por Aldous Huxley em Admirável mundo novo, por exemplo, ao criar um cenário no qual os homens, condicionados desde o nascimento a tudo aceitarem de modo pacífico, por meio de substâncias alienantes e propagandas ideológicas repetidas à exaustão para que ninguém se opusesse ao sistema, antecipou de certo modo o estado de letargia que hoje temos experimentado viciados em prazeres efêmeros e em entretenimentos banais. 



O controle exercido por regimes totalitários e ditatoriais também é tema da obra 1984, clássico de George Orwell. Ao contrário de Admirável mundo novo, no entanto, em 1984, o que vemos é uma sociedade controlada por meio de mecanismos repressivos, submetida à vigilância constante de um líder conhecido como o Grande Irmão, que tudo vê e tudo controla. Ao término da leitura da obra O conto da aia, tive certeza, esta era a distopia que de longe mais lembrava 1984: em ambas, severas punições a quem se opusesse, como execuções e linchamentos; em ambas, tentativas inúteis de burlar o sistema; em ambas, a proibição de qualquer relacionamento amoroso; em ambas, a manipulação da informação — na obra O conto da aia, a narradora chega a suspeitar que as imagens dos telejornais não passassem de encenação; em 1984, havia um Ministério encarregado de falsificar registros históricos e apagar dos jornais as notícias que posteriormente julgassem inconvenientes. 


Depois de efetuadas todas as correções a que determinada edição do Times precisava ser submetida e uma vez procedida a inclusão de todas as emendas, a edição era reimpressa, o original era destruído e a cópia corrigida era arquivada no lugar da outra. Esse processo de alteração contínua valia não apenas para jornais como também para livros, periódicos, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, trilhas sonoras, desenhos animados, fotos — enfim, para todo tipo de literatura ou documentação que pudesse vir a ter algum significado político ou ideológico. Dia a dia e quase minuto a minuto o passado era atualizado. Desse modo era possível comprovar com evidências documentais que todas as previsões feitas pelo Partido haviam sido acertadas; sendo que, simultaneamente, todo vestígio de notícia ou manifestação de opinião conflitante com as necessidades do momento eram eliminados. (ORWELL, 2009, p. 54)


Há diferenças entre as obras citadas, no entanto: na obra O conto da aia, o regime se estabelece após invasão ao Congresso, o assassinato de  todos os membros, a suspensão da Constituição; em 1984, o poder é tomado após uma guerra de escala global; o regime na obra O conto da aia é teocrático, ou seja, religiosamente fundamentalista; o regime em 1984 não é. Mesmo assim são as obras de maior semelhança, o que não impediu que também identificasse pontos de congruência entre elas e as demais tratadas neste artigo. Neste trecho de Admirável mundo novo, por exemplo, também é possível verificar a necessidade que esses regimes totalitários tiveram de apagar tudo que fizesse alguma referência ao passado, pela manutenção do poder:  

 

Acompanhada de uma campanha contra o Passado; do fechamento dos museus; da destruição dos monumentos históricos, que foram arrasados (felizmente, a maioria já havia sido destruída durante a Guerra dos Nove Anos); da supressão dos livros publicados antes do ano 150 d. F.  (HUXLEY, 2003, p. 66)


Outro ponto de congruência entre essas grandes narrativas tão pessimistas em relação ao futuro da humanidade diz respeito ao perigo representado pelos livros a essas sociedades, banidos assim de possível — muitas vezes com a própria anuência daqueles que em breve perderiam todas as suas liberdades individuais, sem saber ou dispostos a correr esse risco por algum motivo julgado maior e mais importante. A velha e absurda cruzada contra os livros que por tantas vezes a humanidade já viu se repetir, para além da ficção.

 

Havia alguns homens, também, em meio às mulheres, e os livros eram revistas. Devem ter derramado gasolina, porque as chamas irromperam altas, e então começaram a descarregar as revistas, de caixas, não muitas de cada vez. Alguns estavam cantando hinos; curiosos começaram a se juntar. Os rostos deles estavam felizes, extasiados, quase. O fogo é capaz de fazer isso. Mesmo o rosto de minha mãe, geralmente pálido, magrela, parecia corado e alegre, como um cartão de Natal; e havia outra mulher, grande, com uma mancha de fuligem riscando-lhe o rosto e um gorro de tricô cor de laranja, lembro-me dela. Você quer jogar uma, querida?, perguntou ela. Quantos anos eu tinha? Que bom nos livrarmos dessa porcaria toda, já vai tarde, disse rindo, divertida. Se importa?, perguntou à minha mãe. (ATWOOD, 2017, p. 50)


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