Aos anos incríveis da vida de todos nós

Por Fabiane Corrêa Monteiro

Tive uma professora que, na Faculdade de Letras, mais especificamente em uma cadeira de Teoria Literária, sempre recorria à etimologia da palavra recordar para defini-la: sendo um vocábulo resultante da junção entre um prefixo que significa repetir e a palavra cordis, termo que em latim significa coração, recordar nada mais é que passar novamente pelo coração — trazer para a memória vivências significativas e emocionantes, ainda que sob um ponto de vista carregado de saudade, e sentir novamente tudo que na ocasião despertaram.
Recordar foi o que Kevin Arnold, o narrador-protagonista de Anos Incríveis, fez durante os 115 episódios desta grande série: contou-nos, já adulto, todas as peripécias de sua infância e de sua adolescência vividas no subúrbio de uma cidade norte-americana entre 1968 e 1973, enquanto suas recordações eram encenadas e compartilhávamos das emoções por ele vividas em passagens que, de certa forma, também remetiam às nossas próprias recordações. Passagens como as que descreverei abaixo, dentre meus episódios favoritos:

Adeus
O retorno do personagem apresentado anteriormente no episódio O professor de matemática, Sr. Collins, bela homenagem de Kevin Arnold a um professor que marcou sua vida. “Os professores nunca morrem, vivem para sempre em nossa memória”, diz Kevin Arnold, logo no início do capítulo, e meus olhos já se enchem de lágrimas. Sou professora, como não me emocionaria?



A quadrilha 
A menina esquisita com quem Kevin Arnold terá que dançar nas próximas aulas de Educação Física, Margareth Farquhar, é a personagem apresentada neste episódio, um dos meus preferidos. A bela reflexão que o protagonista faz de seus atos é que me comove sempre que torno a assistir ao referido episódio, o Kevin já adulto condena o que fez ainda adolescente:
“E naquele último dia de quadrilha, eu dancei sozinho. Talvez, se eu tivesse tido um pouco mais de coragem, poderia ter sido amigo dela, mas a verdade é que na 7ª série você é aquilo que os outros garotos dizem que você é. O engraçado é que é difícil lembrar os nomes das crianças que você gastou tanto tempo tentando impressionar, mas você não esquece alguém como Margareth Farquhar, professora de Biologia, mãe de seis, amiga dos morcegos.”


A queridinha do papai
A relação conflituosa entre a irmã de Kevin Arnold e o pai é o foco deste episódio que também me arranca lágrimas: Karen, uma hippie incorrigível, parece detestar a família nos moldes patriarcais a que pertence, afastando-se cada vez mais de suas origens. Chega a visivelmente rejeitar a festa preparada pelos seus familiares em comemoração a seu próprio aniversário. É a última discussão, no entanto, entre pai e filha: ao final, Sr. Arnold parece finalmente ter percebido que não há alternativa, precisa deixá-la partir.
“Na noite em que minha irmã fez 18 anos, muita coisa aconteceu, talvez mais do que ela pensasse, porque, naquela noite, quando papai deixou que Karen saísse, ele deixou também que ela fosse embora. Talvez tenha que ser assim: os filhos partem, os pais ficam. No entanto, há coisas mais profundas do que o tempo e a distância: seu pai sempre será seu pai, e sempre deixará uma luz acesa para você.”


Dizem que só entendemos os pais quando nos tornamos adultos. É o que acontece entre Karen e seu pai nos episódios posteriores, especialmente depois de seu casamento, de sua partida para o exterior com o companheiro e de sua gravidez. Gosto destes episódios com Karen porque também são verdadeiros registros de época: o casamento, realizado apenas porque já morava como o namorado, o que, nos anos 60, ainda era inadmissível, dispensa o vestido branco e a presença de um padre — é uma cerimônia hippie realizada no quintal de sua casa, estilo paz e amor. Na cena em que Karen experimenta o vestido de noiva que queriam que usasse, ela deixa claro, para o espanto da mãe, que já vinha tendo relações sexuais com o futuro marido, outro tabu da época — exigia-se das mulheres que se casassem virgens.



Voltando para casa
Outro registro de época, perceptível já nos primeiros minutos deste que é outro de meus episódios prediletos de Anos Incríveis: “Em 1972, o país estava em guerra. Com seu exército, com seus ideais, consigo mesmo. Os sonhos dos anos 60 enfrentavam uma nova década. Aconteciam coisas em toda parte.”
Nesse episódio, acompanhamos o dificultoso retorno para casa de um jovem soldado que estivera na guerra do Vietnã. São visíveis a tristeza e a culpa que carrega em seus ombros pelas pessoas que lá precisou matar. Nas palavras de Kevin, “1972 foi uma época muito louca. Garotos jogavam futebol, dirigiam carros, iam à escola, festejavam a vida, enquanto soldados heróis e seus irmãos lutavam para encontrar o caminho de casa depois da guerra.”  


Dia da independência
O último episódio, aquele a que não posso assistir sem uma certa dose de melancolia em meu coração pelo clima de despedida que carrega em si. Dá sequência ao enredo iniciado no episódio anterior, O Verão, que tinha como introdução as seguintes palavras de Kevin Arnold: “Lembro de uma ocasião, de um lugar, de um 4 de julho em especial, das coisas que vi nessa década de guerra e de mudança. Lembro de como foi crescer entre  as pessoas e os lugares que eu amava. Mais do que tudo, lembro de como foi ir embora.”
CONTÉM SPOILER Dia da independência é o episódio em que Kevin Arnold nos conta, por exemplo, não ter ficado com a Winnie, a menina a quem amava tanto; também conta ter perdido seu pai não muito tempo depois daquele dia; mas o que ainda parte o meu coração sempre que torno a assisti-lo são suas palavras finais: “A gente cresce num instante; um dia, estamos de fraldas; no outro dia, vamos embora; mas as recordações da infância ficam conosco por muito tempo. Lembro de um lugar, de uma cidade, de uma casa, como uma porção de casas; de um jardim, como uma porção de outros jardins; de uma rua, como uma porção de outras ruas. A verdade é que, depois de tanto tempo, ainda me recordo: foram anos incríveis.”



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