Análise da transposição realizada pela banda The Cure do poema
em prosa Les yeux des pauvres, de Baudelaire

Fabiane Corrêa Monteiro

            O presente trabalho tem por objetivo analisar a transposição realizada pela banda The Cure do poema em prosa Les yeux des pauvres (Os olhos dos pobres), de Baudelaire, na canção How beautiful you are (Como você é bonita), tendo por base os elementos que definem os gêneros discursivos bem como os conceitos bakhtinianos de dialogismo, polifonia e cronotopia.  
            Bakhtin (2010) define gênero discursivo como tipos relativamente estáveis de enunciado, multiformes, pois variam de acordo com as esferas de uso da linguagem. Além disso, para o autor, todo enunciado é caracterizado por um conteúdo temático, uma construção composicional e um estilo. Na música e no poema temos a descrição de uma cena em primeira pessoa na qual um homem revela-se decepcionado com a atitude da acompanhante diante de um senhor e de duas crianças que, na música, observavam com admiração a mulher, mas, no poema, observavam com admiração a cafeteria nova onde se encontravam. Essa diferença de abordagem entre a música e o poema não impede que entendamos o conteúdo temático comum aos dois: compadecido diante da pobreza do homem e das duas crianças, quem conta a história tanto na música quanto no poema em vão procura nos olhos de sua amada a mesma empatia, o mesmo enternecimento.  Não há qualquer compaixão por parte da mulher em relação àquelas pessoas, pelo contrário. Isso explica o desalento com que se conclui, na música, que ninguém nunca conhece ou ama de fato outra pessoa. Isso explica o desalento com que se conclui, no poema, como o pensamento se mostra incomunicável mesmo entre pessoas que se amam.
Quanto à construção composicional, isto é, ao modo como os dois textos estão organizados, a diferença é oriunda de duas razões específicas: a opção de Baudelaire por estruturar o poema de uma forma não muito convencional no que diz respeito ao gênero, em prosa, e a necessidade de adaptá-lo ao veículo em que na época seria publicado, jornais de grande circulação. O próprio poeta explica no prefácio do livro em que seus poemas em prosa foram publicados o motivo de sua opção pelo referido formato: “Qual de nós que, em seus dias de ambição, não sonhou o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rimas, tão macia e maleável para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência”. Além do mais, o veículo exigia do poeta que seu texto fosse semelhante a uma notícia:
É importante assinalar a forma pela qual os poemas em prosa de Spleen de Paris fizeram sua primeira aparição: os folhetins que Baudelaire compôs para a imprensa parisiense de grande circulação, diária ou semanal. [...] Normalmente aparecia na primeira página ou na página central do jornal, logo abaixo ou ao lado do editorial, a fim de que fosse uma das primeiras coisas lidas. (BERMAN, 1986, p. 143)
Sua opção por estruturar poemas como Les yeux des pauvres (Os olhos dos pobres) em um formato diferente, sem ritmo, sem rimas, reflete também o que Bakhtin define como estilo. Segundo o autor (2010), todo enunciado é individual, ou seja, pode refletir a individualidade do falante.  Os gêneros mais favoráveis a isso são os da literatura de ficção, em que o estilo individual integra diretamente o próprio edifício do enunciado (é um de seus objetivos principais).
A relação entre a música e o poema em análise permite, também, que verifiquemos o que Bakhtin (2010) definiu como dialogismo e polifonia, conceitos inicialmente vinculados ao universo romanesco, devido ao grande número de personagens que o gênero romance é capaz de apresentar e à habilidade de que o romancista precisa “para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzida na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada” (BEZERRA, 2014, p. 191-192). Como no romance dialógico, a música e o poema em estudo revelam a presença de no mínimo cinco vozes distintas: a voz do homem que descreve a cena, a voz da mulher a quem se dirige, a voz do pai que de fora observa e as vozes das crianças que o acompanham.  
O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro “eu para si” infinito e inacabável. (BEZERRA, 2014, p. 194)
Baudelaire é o regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico no poema em estudo. É importante ressaltar que essas vozes, entretanto, não pertencem apenas a personagens diferentes, pertencem a classes sociais diferentes, reforçando a crítica que o poeta pretendia fazer à desigualdade social e à divisão de classes, perceptível em falas como a do menino a seu pai (“Que beleza! Que beleza! Mas é uma casa onde só podem entrar pessoas que não são como nós!”). É importante ressaltar também que a fala atribuída aos pobres, tanto no poema quanto na música, é uma tradução do que dizem seus olhos, o que pode ter sido intencional da parte de Baudelaire, em uma possível referência a um dos direitos básicos historicamente negados aos mais necessitados, o direito à palavra.     
Bakhtin não nega o papel do autor no processo polifônico nem lhe reserva uma função secundária. Para ele o autor não é passivo, não renuncia ao seu ponto de vista e à sua verdade, não se limita a montar pontos de vista e verdades alheias; ele enfatiza a relação dialógica entre autor e personagem. (BEZERRA, 2014, p. 199)
Uma análise mais apurada da reação do casal diante da presença do pai e das crianças em frente à cafeteria aponta, ainda, para a exclusão provocada pela construção dos bulevares em Paris, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional. “Ao lado do brilho, os detritos: as ruínas de uma dúzia de velhos bairros [...] se amontoavam no chão. Para onde iria toda essa gente? Os responsáveis pela demolição e reconstrução não se preocupavam especialmente com isso” (BERMAN, 1986, p. 148).
A manifestação das divisões de classe na cidade moderna implica divisões interiores no indivíduo moderno. Como poderiam os amantes olhar os pobres em farrapos, de súbito surgidos entre eles? [...] O bulevar os força a reagir politicamente. A resposta do homem vibra na direção da esquerda liberal: ele se sente culpado em meio à felicidade, irmanado àqueles que a podem ver, porém não podem desfrutar dela; sentimentalmente, ele deseja torná-los parte da família. As afinidades da mulher — ao menos nesse instante — estão com a direita, o Partido da Ordem: nós temos algo que eles querem; logo, o melhor é “apelar para o gerente”, chamar alguém que tenha o poder de nos tornar livres deles. Por isso, a distância entre os amantes não é apenas uma falha de comunicação, mas uma radical oposição ideológica e política. (BERMAN, 1986, p. 149)
Outro conceito importante à análise dos gêneros é a chamada cronotopia, isto é, a análise do gênero como expressão de um grande tempo das culturas e civilizações. Para Bakhtin (2010), as obras vivem em um grande tempo cultural porque são capazes de romper os limites do presente em que surgiram, são eternas. Em um processo póstumo, elas se enriquecem adquirindo novos significados, e deixam de ser o que eram na época de sua criação. Releituras e adaptações, deste modo, revelam a grandiosidade de obras que resistiram às barreiras do tempo, do espaço. Obras que servem de inspiração a outras obras, como o poema de Baudelaire serviu de inspiração à canção composta pela banda The Cure mais de cem anos depois de sua primeira publicação.
A teoria do cronotopo nos faz entender que o gênero tem uma existência cultural, eliminando, portanto, o nascimento original e a morte definitiva. Os gêneros se constituem a partir de situações cronotópicas particulares e também recorrentes por isso são tão antigos quanto as organizações sociais. (MACHADO, 2005, p. 159)
            A relação dialógica e polifônica observada na multiplicidade de vozes que podem interagir em um determinado gênero discursivo, desta forma, ocorre, também, nas relações que podemos identificar entre duas obras ou mais.  “A obra é um elo na cadeia da comunicação discursiva; como a réplica do diálogo, está vinculada a outras obras – enunciados” (BAKHTIN, 2010, p. 279).





REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 261-306.

BAUDELAIRE, Charles. Os olhos dos pobres. In: Pequenos poemas em prosa (O spleen de Paris). Disponível em: https://iedamagri.files.wordpress.com/2014/07/baudelaire-spleen-de-paris.pdf Acesso em: 02 jul 2017.

BERMAN, Marshall. A família de olhos. In: Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade.  Disponível em: http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/ Berman,%20Marshall/Tudo%20o%20que%20%C3%A9%20s%C3%B3lido%20desmancha%20no%20ar.%20A%20aventura%20da%20modernidade.pdf Acesso em: 02 jul 2017.

BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, p. 191-200.

MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, p. 151-166.



 


 
THE CURE. How beautiful you are. In: Kiss me, kiss me, kiss me. New York/Los Angeles: Elektra/Asylum Records, 1987. CD.


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